Nosso maior receio para cruzar a Transiberiana era sobre quem seriam nossos companheiros de cabine por tanto tempo, em tão longa viagem? Pensamos nos mais mal-encarados tipos russos, em bebuns grosseiros, em adolescentes porcalhões, numa tripulação ranzinza... confesso que não estava muito otimista.
E, já no embarque, tivemos uma surpresa. Fomos os primeiros a entrar na cabine. Em seguida, chegou uma criança risonha carregando um grande embrulho. Pensamos: pronto, esse menino vai fazer bagunça na nossa cabeça a viagem inteira. Na sequência, apareceu um adolescente, de uns 14 anos, com outra mala bem avantajada. Aí, gelamos... Uma criança e um aborrecente por quatro dias consecutivos seria mortal!
Mas, para a nossa alegria, eles eram apenas os “carregadores de mala” da simpática vovó, chamada Anna, que parecia ter saído de um desenho animado. Com 81 anos de idade, bem gordinha, cabelo preso em coque, pés bem pequenininhos e um cheirinho de limpeza, ela se despediu calorosamente dos netos e foi nossa fiel companheira na primeira etapa da Transiberiana. Nessa carência de colo de vó que eu estou, adotei Anna como minha babushka.
Que sossego tivemos com a firme presença da Anna! Com cara de ser bem sistemática, ela pôs ordem na cabine e, nenhum dos outros acompanhantes que entrou no nosso “quartinho” ousou fazer qualquer tipo de bagunça. Descobrimos que ela foi professora de jardim de infância, detesta os Estados Unidos, tem três filhos, alguns netos (não sabemos quantos) e, quando mostramos um copo comprado pelo Renato em Moscou, com a foto de Lenin e o símbolo do comunismo, ela não segurou a risada.
Mesmo sem termos uma língua em comum, já deu para ver que a comunicação não foi problema para nós. Acreditem se quiser, mas, mesmo em russo, ela conversou conosco toda a viagem. Ela na língua dela e nós com um sorriso sempre aberto, nos entendemos super bem. A afinidade foi tanta que a Anna vivia preocupada com nosso bem-estar, ajeitando nosso edredon quando fazia frio, ensinando técnicas de aquecer a cama com uma garrafa de água quente e até se agachando para ajudar a procurar um brinco meu no chão... uma gracinha!
Além da Anna, outras pessoas passaram por nossa cabine ao longo da viagem. Nas primeiras quatro horas, tivemos a companhia rápida de um rapaz simpático. Mas, apesar de ele falar inglês, a Anna monopolizou a conversa e ficou horas batendo papo com o moço em russo. Quando ele desceu, entrou um outro loirinho, super calado e discreto, chamado Pavlin. Ele passava horas e horas dormindo ou brincando no celular. Mas ele era divertido e, depois de umas cervejas e uns conhaques no restaurante do trem, voltou sorridente, fez vários brindes com o Renato, compartilhou bebidas e tira-gostos e, juntos, demos boas risadas.
A parte mais cômica é que ele se engraçou para o lado de uma das comissárias do trem. Até a Anna captou que havia um romance no ar e, num tom de segredo, nos fez a fofoca de que os dois estavam no maior “I love you” (única expressão em inglês que a babushka parecia conhecer!). Rsrsrs... Numa das madrugadas, Pavlin sumiu da nossa cabine e temos fortes suspeitas de que ele” encantoou a paca” na cabine da comissária, como diz o Tunai.
Também fizemos amigos fora da nossa cabine. No mesmo vagão, havia um casal super peça rara! Dimas e XXX (não consegui entender nenhuma letra do nome da mulher dele!). Parece que eles tinham se casado há poucos dias e, portanto, não se cansavam de mostrar fotos da boda feitas no celular. O Dimas gostava de uma cervejinha brava e, claro, essa foi a razão de tanta afinidade com o Renato. Para selar a amizade, antes de desembarcar, eles nos presentearam com um santinho da Igreja Ortodoxa Russa e, pelas mímicas, eu deduzi que aquela imagem seria do padroeiro dos casais.
Outro amigo do vagão foi o garoto Dimian, de apenas 4 anos de idade. Como todo bom gordinho, ele farejou longe as guloseimas que havia em nossa mala (chocolates, biscoitos e afins) e, portanto, não foi difícil conquistar a amizade dele. Ele sempre tinha um sorriso aberto para nós e, vira-e-mexe, ensaiava umas brincadeiras de luta conosco no corredor. E foi numa dessas que o Renato soltou uma pérola que quase me matou de rir. Segundo ele, o Dimian é o menino mais feliz do mundo por estar fazendo, aos 4 anos, a viagem que tivemos de esperar 40 anos para fazer... Eu mereço, né?